N. 5 – 2006 – Tradizione Romana

 

José Carlos Moreira Alves

Prof. Emérito das Universidades de São Paulo e de Brasilía

ex Presidente do Supremo Tribunal Federal

 

O novo Código Civil brasileiro: principais inovações na disciplina do negócio jurídico e suas bases romanísticas

 

Sommario: 1. O negócio jurídico e os demais atos jurídicos lícitos. – 2. A estrutura da disciplina do negócio jurídico. – 3. Alterações nas disposições gerais. – 4. A representação. – 5. Inovações nos preceitos sobre condição, termo e encargo. – 6. Os defeitos do negócio jurídico. – 7. A invalidade do negócio jurídico.

 

 

1. – O negócio jurídico e os demais atos jurídicos lícitos

 

É na disciplina  dos negócios jurídicos que o novo Código Civil brasileiro, no tocante à sua Parte Geral, apresenta maiores alterações em face do Código Civil de 1916.

Ao redigir o projeto deste, no final do século XIX, não contava CLÓVIS BEVILÁQUA com os subsídios que, alguns anos mais tarde, viria a ministrar a doutrina germânica para a distinção, em categorias dos atos jurídicos lícitos. Em 1899, a diferença entre negócio jurídico e ato jurídico em sentido estrito ainda se apresentava, até na obra dos demais eminentes romanistas e civilistas alemães, de maneira pouco precisa. REGELSBERGER[1] que nessa época se destaca no particular, não vai além de observar que há atos jurídicos lícitos em que se aspira positivamente ao efeito jurídico e outros em que este ocorre ainda fora da vontade do agente, sendo os primeiros os negócios jurídicos, podendo-se dar aos outros, na falta de denominação reconhecida, o nome de atos semelhantes a negócios jurídicos.

Não havia, ainda, estudo mais aprofundado dessas espécies de atos jurídicos lícitos. Faltava maior precisão à linha divisória entre essas duas figuras. Suas conseqüências careciam de exame.

Outro é o panorama nos dias que correm. Graças aos esforços, inicialmente de MANIGK[2] e de KLEIN[3], e depois, dos mais autorizados juristas que se têm ocupado com esse problema, poucos são os que atualmente, negam a distinção conceitual dessas duas espécies de atos jurídicos lícitos[4]. É certo que ainda não está escoimada de imprecisões e de incertezas a construção doutrinária da categoria que REGELSBERGER denominava atos semelhantes a negócios jurídicos, e que, hoje, geralmente é designada pela expressão atos jurídicos em sentido estrito. Atos há que, para alguns, são negócios jurídicos, e, para outros, atos jurídicos em sentido estrito. Ainda é casuística a aplicação, ou não, a esta categoria, das normas que disciplinam aquela. Apesar desses percalços, não se pode negar que atos jurídicos lícitos há a que os preceitos que regulam a vontade negocial não têm alguma ou inteira aplicação.

Atento a essa circunstância, o novo código Civil brasileiro, no livro III de sua Parte Geral, substituiu a expressão genérica ato jurídico, que se encontra no Código de 1916, pela designação específica negócio jurídico, pois é a este, e não necessariamente àquele, que se aplicam todos os preceitos ali constantes. E, no tocante aos atos jurídicos lícitos que não são negócios jurídicos, abriu-lhes título, com um artigo único, em que se determina que se lhes apliquem, no que couber, as disposições disciplinadoras do negócio jurídico. Seguiu-se, nesse terreno, a orientação adotada, a propósito, no artigo 295º do Código Civil português de 1967.

Assim, deu-se tratamento legal ao que já se fazia, anteriormente, com base na distinção doutrinária.

Ambas as normas – a do artigo 295º do Código Civil português de 1967 e a do artigo 185 do novo Código Civil brasileiro – esgotam a disciplina das ações humanas que, por força do direito objetivo, produzem efeitos jurídicos em consideração à vontade do agente, e não simplesmente pelo fato objeto dessa atuação. Quando ocorre esta última hipótese, já não há que falar em ato jurídico, mas sim – e é dessa forma que o considera o direito – em fato jurídico em sentido estrito (são os atos-fatos jurídicos da doutrina germânica)[5].

A teoria dos atos jurídicos não nasce com os romanos. Juristas práticos, não se preocuparam eles, as mais das vezes, com categorias abstratas. Voltaram suas vistas para os atos do homem de que resultavam obrigações, e, com relação aos fatos de que nasciam essas obrigações distinguiram determinadas figuras. Cuidaram, assim, de atos jurídicos específicos e não da figura genérica de ato jurídico, e as expressões actus e negotium que se encontram em seus textos não têm significado técnico.

Foram os juristas alemães que, a partir dos meados do século XVIII, com base nos textos romanos, iniciaram a elaboração da teoria geral do ato jurídico lícito. Em 1748, NETTELBLADT, no Systema Elementare Universae Iurisprudentiae Positivae, se utilizou dos termos actus iuridicus e negotium iuridicum, expressões que teve como sinônimas. A designação Rechtsgeschäft (negócio jurídico) como espécie de ato jurídico é devida a WEBER e a HUGO, no final do século XVIII.

Por ter sido essa teoria construída principalmente sobre os casuísticos textos romanos, é de manifesto interesse o exame dessas fontes para o aprofundamento do estudo do novo Código Civil brasileiro no tocante às inovações que apresenta em face do de 1916.

Não é demais relembrar a observação de RICCOBONO, no prefácio da obra de SCIALOJA, Negozi Giuridici[6], no sentido de que «entre todos os argumentos da dogmática civilista moderna o que concerne ao negócio jurídico é de longe o mais importante, direi o centro vital de todo o sistema do direito privado».

Por não terem, porém os juristas romanos, como já referido, formulado a teoria do negócio jurídico – é isolada a opinião de DULCKEIT[7] no sentido de que eles foram além de uma utilização inconsciente dessa figura jurídica, tanto que chegaram a criar princípios que se aplicam a todos os atos ou a vários deles que ela abarca –, não se encontra nos textos romanos a conceituação dele, nem a distinção entre ele e os demais atos jurídicos lícitos.

 

 

2. – A estrutura da disciplina do negócio jurídico

 

Ao ordenar as normas concernentes ao negócio jurídico, o Código novo afastou-se do sistema adotado no Código de 1916, como se vê do quadro comparativo seguinte:

 

 

Código Civil de 1916

 

 

O novo Código Civil

 

Cap. I – Disposições Gerais

 

 

Cap. I – Disposições Gerais

 

Cap. II – Dos defeitos dos negócios jurídicos

 

 

Cap. II – Da representação

 

Cap. III – Das modalidades dos atos jurídicos

 

 

Cap. III – Da condição, do termo e do encargo

 

Cap. IV – da forma dos atos jurídicos e da sua prova

 

 

Cap. IV – Dos defeitos do negócio jurídico

 

Cap. V – Das nulidades

 

 

Cap. V – Da invalidade do negócio jurídico

 

Desse confronto, verifica-se que, embora conservando o mesmo número de capítulos – cinco –, o novo Código não só modificou a ordem de colocação, mas também retirou um que está no Código de 1916 (“Da forma dos atos jurídicos e da sua prova”), acrescentando, em contrapartida, outro que neste não se acha (“Da representação”).

Exclusão e inclusão explicam-se facilmente.

Retirou-se o capítulo “Da forma dos atos jurídicos e da sua prova”, porque se entendeu que a maior parte do seu conteúdo, que é referente à prova, diz respeito, em rigor, aos fatos jurídicos em sentido amplo, e não apenas aos negócios jurídicos. Daí a razão por que, no novo Código, o Título V do livro III da Parte Geral – que se intitula “Dos fatos jurídicos” – é dedicado todo à prova. Quanto às normas concernentes à forma do negócio jurídico, e cuja sedes materiae no Código de 1916 se encontra também no capítulo ora excluído, foram elas colocadas, no novo, nas “Disposições gerais”, onde se estabelecem os preceitos gerais sobre os requisitos de validade do negócio jurídico, um dos quais é a forma prescrita ou não defesa em lei.

Incluíram-se, por outro lado, em capítulo próprio, na Parte Geral do novo Código, regras genéricas sobre representação legal e voluntária, suprindo-se, desse modo, omissão do Código de 1916.

Na ordem de matérias observada, no tocante ao negócio jurídico, pelo novo Código, prevaleceu, afinal, o sistema originariamente proposto no Anteprojeto da Parte Geral:não se segue a tricotomia existência-validade-eficácia do negócio jurídico, posta em particular relevo, no Brasil, por PONTES DE MIRANDA, no seu Tratado de Direito Privado. À objeção de que a sistemática que veio a preponderar seria antiquada, antepôs-se-lhe a demonstração de que a observância daquela tricotomia, que para efeito de codificação se reduziria à dicotomia validade-eficácia, condiziria a discrepâncias desta ordem: a) no capítulo “Da validade dos negócios jurídicos”, tratar-se-ia apenas dos casos de invalidade do negócio jurídico (nulidade e anulabilidade); b) do capítulo “Da eficácia dos negócios jurídicos” não se abrangeriam todos os aspectos da eficácia, mas apenas uma parcela deles (os impropriamente denominados elementos acidentais do negócio jurídico).

 

 

3. – Alterações nas disposições gerais

 

Ao contrário do que ocorre no Código de 1916, com relação ao ato jurídico, o novo não definiu o negócio jurídico, atento à diretriz de se retirarem de seu bojo princípios de caráter meramente doutrinário. No entanto, da disciplina que ele lhe dá se verifica que não adotou a concepção objetiva ou perceptiva, que teve origem em BÜLOW, e que é sustentada mais modernamente, e com nuances diversas, por LARENZ e BETTI, mas preferiu manter a concepção subjetiva que é mais consentânea com a realidade, porquanto dele surgem relações jurídicas, e não, propriamente, normas. Afastou-se, todavia, as mais das vezes, dos exageros a que conduz a concepção subjetiva lastreada na rígida observância do dogma da vontade, recorrendo, para isso, à concepção subjetiva mitigada pelos princípios da auto-responsabilidade do declarante e da confiança nessa declaração pelo seu destinatário

No artigo 104, relativo aos requisitos da validade do negócio jurídico, o novo Código acrescenta à enumeração feita pelo artigo 82 do Código de 1916 que o objeto dele, além de lícito, deve ser possível e determinado ou determinável. Nesse particular, as fontes romanas são explícitas quanto à invalidade do negócio jurídico cujo objeto é impossível, seja física, seja juridicamente. Assim, Gaio, nas Institutas (III, 97 e seguintes) dá vários exemplos de stipulationes inválidas (inutiles) por impossibilidade física ou jurídica de seu objeto. Por exemplo, é inválida a stipulatio cujo objeto não exista na natureza, ou não possa nela existir, como a que tem por objeto dar-se um hipocentauro (impossibilidade física); igualmente é inválida a que tem por objeto a transmissão de um locum sacrum vel religiosum (impossibilidade jurídica). Celso, D. 50.17.185, salienta: “impossibilium nulla obligatio est”. E Venuleio (D. 45.1.1374) distingue o impedimentum naturale, que é a impossibilidade que diz respeito ao objeto prometido, da maior ou menor dificuldade em se poder pagar. De resto, a determinação do objeto do negócio jurídico é exigida em texto atribuído a Marcello (D. 45.1.94).

Por outro lado, não têm símiles, no código de 1916, os artigos 110, 111 e 113 do novo.

O artigo 110 trata da reserva mental, tendo-a por irrelevante, salvo se conhecida do destinatário, caso em que se configura hipótese de ausência de vontade, e, conseqüentemente, de inexistência do negócio jurídico. No direito romano, BETTI[8] extrai a irrelevância da reserva mental dos seguintes textos: D. 2.15.12; D. 16.1.30pr.; D. 12.6.50; D. 46.4.8, pr. interpolado; D. 40.1.4.1; e D. 13.7.1.1. CARLO LONGO[9], porém, sustenta que o único texto que, nas fontes, trata da reserva mental é o D. 29.2.6.7, que está tão corrompido por glossemas e provavelmente por interpolações que não permite qualquer conclusão sequer para o período justinianeu. MÁRIO TALAMANCA[10], salientando que os juristas romanos praticamente (e isso, por certo, por se tratar de questão mais teórica do que prática) não a tomaram em consideração, entende – e nesse sentido é a orientação da doutrina romanista dominante, ainda que sem apoio claro nas fontes – que a reserva mental era irrelevante no direito romano.

O artigo 111 preceitua quando o silêncio importa anuência, o que se verifica toda a vez em que as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa. A regra, em direito romano, é a de que “quem cala não afirma nem nega” (cfe. D. 50.117.142). Pode o silêncio, no entanto, ser manifestação tácita de vontade quando as circunstâncias do caso o autorizarem, como ocorre quando há o ônus jurídico de contradizer ou de não contradizer decorrente da natureza da relação jurídica ou de convenção preestabelecida pelas partes (D. 1.7.4 que parece interpolado; D. 14.6.12; D. 14.6.16; C. 8.25.6), ou quando a lei atribui ao silêncio valor de concordância ou de recusa (D. 23.1.7.1; D. 24.3.2.2). Ampla citação das fontes romanas sobre essas exceções se encontra em SAVIGNY[11].

No artigo 113, consagra-se a seguinte norma relativa à interpretação do negócio jurídico: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”. Boa-fé, nesse dispositivo, não é a boa-fé subjetiva, mas, sim, a boa-fé objetiva, que se situa no terreno das relações obrigacionais e do negócio jurídico em geral, e se caracteriza como regra de reta conduta do homem de bem no entendimento de uma sociedade em certo momento histórico, não se fundando, pois, na vontade das partes, mas se ligando a deveres secundários ou instrumentais cuja observância nessas relações se exige. É, portanto, algo exterior ao sujeito, e que, no concernente à interpretação, se relaciona ora com a hermenêutica integradora, ora com a hermenêutica limitadora, possibilitando, assim, que o conteúdo do negócio jurídico seja integrado ou limitado por esses deveres, como, por exemplo, o dever do vendedor de tudo fazer para que a coisa vendida seja entregue ao comprador e chegue íntegra a este. Nos textos romanos, não há preceito correspondente ao sob exame. DI MARZO[12], com relação ao artigo 1.366 do Código Civil italiano que trata da interpretação de boa-fé, remete ao artigo 1.337, referente ao comportamento de boa-fé que as partes devem seguir no desenvolvimento das tratativas e na formação do contrato, e acentua que, nesses casos, o direito romano operava com a noção de dolo. Com efeito, traçando a evolução da fides bona no direito romano das obrigações, cujos pormenores ainda são controvertidos, salienta HOVART[13] que ela, na época histórica, significa fidelidade à palavra dada com o dever de cumprimento da promessa, o que levou ao reconhecimento jurídico e, portanto, à possibilidade de intentar ação – que não podia basear-se no oportere – em certos contratos (assim, nos consensuais mais antigos, a saber, a compra-e-venda e a locação), que não eram conhecidos do antigo ius civile, mas o foram primeiramente no comércio internacional dos romanos com os estrangeiros, dando-lhes sanção jurídica o pretor peregrino. Com o passar do tempo, esses contratos ingressaram no ius civile como negócios iuris gentium. Assim – e é essa a opinião dominante – a fórmula baseada no oportere ex fide bona foi introduzida pelo pretor peregrino, e depois adotada pelo pretor urbano, ingressando no ius civile. A fides bona tem, então, nova função: a de exigir que os contratantes ajam sem dolo e segundo o critério de relações leais e honestas, ou seja, a de exigir deles comportamento honesto positivo. A categoria dos iudicia bonae fidei já era conhecida no tempo de Plauto, e sua função de repressão do dolo e da desonestidade é da época de Cícero. No direito clássico, os iudicia bonae fidei dão ao iudex maior liberdade de apreciação, transformando-se a função da fides bona em meio de alargamento do officium iudicis, permitindo ao iudex levar em consideração o dolo de um dos litigantes sem a inserção da fórmica da exceptio doli, bem como fazer, ao determinar o valor da condenação, a compensação dos créditos e débitos do autor e do réu, e incluir, na condenação, o valor dos frutos e dos juros não convencionados. Com o desaparecimento do processo formulário e, na fórmula, da cláusula oportere ex fide bona, a boa-fé no direito pós-clássico se transforma em cláusula geral de direito material que domina todo o sistema contratual. Por isso, no direito justinianeu alarga-se a esfera das ações bonae fidei e se restringe a das ações stricti iuris.

 

 

4. – A representação

 

Outra inovação do novo Código é a introdução em sua Parte Geral de capítulo, que abarca os artigos 115 a 120, consagrado à representação legal e convencional. Nele disciplinam-se, inclusive, o negócio jurídico consigo mesmo (“Art. 117. Salvo se o permitir a lei ou o representado, é anulável o negócio jurídico que o representante, no seu interesse ou por conta de outrem, celebrar consigo mesmo”) e a questão relativa ao negócio jurídico concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado (“Art. 119. É anulável o negócio concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado, se tal fato era ou devia ser do conhecimento de quem como aquele tratou. Parágrafo único. É de 180 (cento e oitenta) dias, a contar da conclusão do negócio ou da cessação da incapacidade, o prazo de decadência para pleitear-se a anulação prevista neste artigo”). No direito romano, ao contrário do direito moderno, não se admitia, em regra, a representação direta, que é a em que o representante age em nome e por conta do representado, caso em que os efeitos do negócio jurídico recaem exclusivamente sobre a pessoa do representado que é dominus negotii. É certo que, no período clássico, o ius civile somente admitia raras exceções a esse princípio. Já o ius honorarium foi mais pródigo a respeito, embora os casos de representação direta permitidos pelo pretor ainda fossem hipóteses excepcionais, tanto que, nem no Edito nem em seus comentários, se encontra a admissão generalizada da representação direta. Justiniano também não aboliu a regra, tendo, no entanto, aumentado o número de exceções a ela. Assim, nas fontes, não há textos relativos a problemas decorrentes da representação direta, que é a representação do mundo moderno, como os ora regulados pelo novo Código Civil brasileiro: o do negócio jurídico consigo mesmo e o do negócio jurídico concluído pelo representante em conflito de interesses com o representado. Note-se que tanto DI MARZO[14] quanto NARDI[15] têm, certamente como fonte remota da restrição ao contrato consigo mesmo – e fonte remota pois o texto em que se baseiam não diz respeito à representação –, a observação, que se encontra no D. 2.14.9pr., de que é difícil que um só homem faça o papel de dois (“difficile est, ut unus homo duorum vicem sustineat”).

 

 

5. – Inovações nos preceitos sobre condição, termo e encargo

 

O Código Civil de 1916, sob o título “Das modalidades dos atos jurídicos” trata da condição, do termo e do encargo (modus), afastando-se do seu modelo, no tocante à Parte Geral, que foi o BGB. Este, aí, ocupa-se apenas da condição e do termo, por não reconhecer, certamente, caráter de generalidade ao modus que somente pode ser aposto aos negócios gratuitos. Diversa, porém, era a sistemática observada pelos pandectistas germânicos, que o estudavam na Parte Geral, orientação que foi mantida pelo novo Código Civil brasileiro, que, porém, abandonou, por impróprio, o título “Das modalidades do ato jurídico” e o substituiu pelo “Da condição, do termo e do encargo”.

No que diz respeito à condição, procurou ele aperfeiçoar o Código de 1916, corrigindo-lhe falhas e suprindo-lhe lacunas. Assim, no artigo 121 (que corresponde em parte ao 117 do Código de 1916), a inclusão da frase “derivando exclusivamente da vontade das partes” serve para afastar do terreno das condições em sentido técnico as condiciones iuris. No artigo 122 do novo Código substituiu-se a fórmula empregada pelo artigo 115 do código de 1916 (“São lícitas, em geral, todas as condições, que a lei não vedar expressamente”) por esta mais exata: “São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes”. Ao tratar das condições que invalidam o negócio jurídico e das que se têm por inexistentes, o novo Código, nos artigos 123 (“Invalidam os negócios jurídicos que lhes são subordinados: I – as condições física ou juridicamente impossíveis, quando suspensivas; II – as condições ilícitas, ou de fazer coisa ilícita; III – as condições incompreensíveis ou contraditórias”) e 124 (“Têm-se por inexistentes as condições impossíveis, quando resolutivas, e as de não fazer coisa impossível”), corrige falhas de há muito observadas no Código de 1916, além de tornar expresso que as condições incompreensíveis ou contraditórias são causas de invalidade do negócio a que foram apostas. Ao disciplinar a eficácia da condição resolutiva, no artigo 128, ele inova, com relação ao Código de 1916, ao estabelecer que, se ela for aposta a um negócio de execução continuada ou periódica, “a sua realização, salvo disposição em contrário, não tem eficácia quanto aos atos já praticados, desde que compatíveis com a natureza da condição pendente e conforme aos ditames de boa-fé”. Ademais, suprime-se, no novo Código, a referência que o parágrafo único do artigo 199 do Código de 1916 faz á condição resolutiva tácita, que não é condição em sentido técnico, pois esta só se configura se aposta ao negócio jurídico. E, no artigo 130, o novo Código estendeu à condição resolutiva – o que se impunha para a proteção da parte que, enquanto pende essa condição, é titular de direito expectativo – a regra (limitada no Código de 1916 à hipótese de condição suspensiva) de que ao titular de direito eventual é permitido exercer os atos destinados a conservá-lo.

O direito romano não conheceu a condição resolutiva. Ele chegava ao resultado a que se chega, com ela, no direito moderno, pela aposição, ao negócio jurídico, de um pacto de resolução sob condição suspensiva (D. 18.3.1; e D. 41.2.4, 3, tido como interpolado). A condicio era sempre suspensiva, e, quando esta consistia em fato impossível física ou juridicamente, divergiam, no período clássico, a escola dos proculeianos (que sustentava que essas condições acarretavam a nulidade do negócio jurídico tanto inter vivos quanto mortis causa) e a escola dos sabinianos (que entendia que, nos negócios mortis causa, essas condições se tinham como não-apostas, sendo válido o negócio jurídico como puro); já nos períodos pós-clássico e justinianeu, as condições impossíveis apostas a negócio inter vivos levam á nulidade deste, ao passo que no negócio mortis causa se têm como não-apostas (com relação a esses períodos, vide Gaio, Institutas III, 98; D. 28.5.46(45); D. 35.1.3; e Inst. 2.14.10). O novo Código Civil brasileiro, como se vê, seguiu a orientação adotada pelos proculeianos. Quanto às condições ilícitas e imorais, no período clássico, elas, em regra, não invalidavam o negócio jurídico no sistema do ius civile, salvo algumas exceções (assim, a título de exemplo, as condições captatórias), mas o pretor, atuando no âmbito do ius honorarium, contra tais condições apostas a negócios jurídicos inter vivos, principalmente em se tratando de stipulationes, inutilizava a validade desses negócios, denegando ação contra o não-cumprimento da stipulatio, ou concedendo à parte obrigada uma exceptio doli; e, em se tratando de negócio jurídico mortis causa, o pretor exonerava o interessado do cumprimento de condição dessa natureza (remissio condicionis), o que indiretamente acarretava a validade do negócio; nos períodos pós-clássico e justinianeu, as condições ilícitas e imorais têm o mesmo tratamento das impossíveis: se apostas a negócio jurídico inter vivos ocasionam a nulidade deste; se se tratar de negócio mortis causa, têm-se como não-apostas (a propósito, Paulo, Sent. III, 4 B, 2; e D. 35.1.64pr.). o novo Código Civil brasileiro, portanto, seguiu apenas em parte o direito romano pós-clássico e justinianeu, pois considerou que as condições ilícitas (e, conseqüentemente, também as de fazer coisa ilícita) invalidam, por via de regra, tanto os negócios jurídicos inter vivos quanto os mortis causa, mantendo, porém, na parte especial, no artigo 1.899 (que corresponde, sem alteração, ao artigo 1.667 do Código de 1916), norma que dispõe que é nula a disposição testamentária que institua herdeiro ou legatário sob a condição captatória de que este disponha, também por testamento, em benefício do testador, ou de terceiro. De outra parte, também no direito romano, não é condição a condicio iuris, ou seja, requisito legal de eficácia, que, portanto, decorre automaticamente de norma jurídica e não da aposição em negócio jurídico por vontade das partes (D. 35.1.21). E, no que diz respeito às condições contraditórias ou perplexas, que são as que encerram em si mesmas contradição – assim as referidas no D. 28.7.16, e D. 40.4.39 –, os citados textos consideram que a instituição de herdeiro e a manumissão sob condição dessa natureza em testamento são nulas (inutiles). Daí, observar PEROZZI[16] que essas condições anulam sempre seja a stipulatio, seja a disposição de última vontade, porque a sua perplexidade torna perplexa a própria declaração principal.

No tocante ao termo, a única alteração que merece referência é a do § 3º do artigo 132 do novo Código, no qual se estabeleceu o princípio de que os prazos de meses e de anos expiram no dia de igual número de início, ou no imediato, se falta exata correspondência. No direito romano, SCIALOJA[17], depois de fazer longa resenha das opiniões divergentes sobre a contagem do tempo quando o prazo é de ano inteiro, se manifesta no sentido de que, para o anniculus, para a capacidade de fazer testamento e para a capacidade de manumitir, os textos (assim, respectivamente, D. 50.16.132 e 134; D. 38.1.5; e D. 40.1.1) são claros em que para a idade ou para essas capacidades o prazo iniciado em qualquer momento do dia 1º de janeiro se tem como completado no primeiro momento do dia 31 de dezembro do mesmo ano. Já com relação à contagem desse prazo em se tratando de prescrição (prescrição extintiva), salienta ele que, com base no D. 44.7.6, não há dúvida de que, iniciada ela em 1º de janeiro, se terá como ocorrente no fim do dia 31 de dezembro de igual ano; mas, em se tratando de usucapião (prescrição aquisitiva), a questão é controvertida pela divergência de interpretação de três textos (D. 44.3.15pr.; D. 41.3.6; e D. 41.3.7) que, por sua obscuridade, não permitem que se chegue a qualquer resultado seguro.

Finalmente, preenchendo lacuna do Código de 1916, o novo contém preceito (artigo 137) sobre os encargos ilícito e impossível com o teor seguinte: “Considera-se não escrito o encargo ilícito ou impossível, se constituir o motivo determinante da liberalidade, caso em que se invalida o negócio jurídico”. Em direito romano, os romanistas divergem. Segundo SCIALOJA[18] e PEROZZI[19], entre outros, o modo ilícito ou impossível era tido por não-escrito; BIONDO BIONDI[20], porém, sustenta que, em face das fontes romanas, era necessário o exame da intenção do autor da disposição: se o modo se apresenta como disposição autônoma ou paralela com relação ao negócio jurídico, a nulidade daquele não implica a deste; caso contrário, a nulidade do modo importa a do negócio jurídico.

 

 

6. – Os defeitos dos negócios jurídicos

 

Ao tratar dos defeitos do negócio jurídico, o novo Código apresenta várias inovações em face do Código de 1916.

Dois institutos – o estado de perigo e a lesão – que não se encontram neste, têm assento naquele. Demais, alterações se introduziram na disciplina do erro, do dolo, da coação e da fraude contra credores. O tratamento da simulação foi inteiramente reformulado, sendo deslocado para o capítulo V (“Da invalidade do negócio jurídico”).

O estado de perigo, de que trata o artigo 156 do novo Código, era objeto do artigo 121 do Projeto de CLÓVIS BEVILÁQUA – é certo que em termos algo diversos, e com solução diferente: o negócio jurídico presumia-se nulo por vício da vontade, enquanto não ratificado, depois de passado o perigo – e foi suprimido pela Comissão Revisora, sem que se saibam os motivos que a isso a conduziram. Em virtude dessa lacuna, que também ocorre me vários sistemas jurídicos, a doutrina, no Brasil, não é uníssona sobre a solução a ser dada a essa hipótese, seguindo as vacilações dos autores franceses e italianos. EDUARDO ESPÍNOLA[21] chega a afirmar que o parágrafo 138 do BGB resolve, na Alemanha, esse caso, quando, em verdade, o citado dispositivo se refere, propriamente, ao instituto da lesão, em que não se configura perigo de vida. Tratando-se de estado de perigo, o novo Código, no seu artigo 171, II, declara anulável o negócio jurídico, e, ao contrário do que sucede no direito italiano (Código Civil, artigo 1.447, 2ª parte), que determina que o juiz, ao rescindir o negócio, pode, segundo as circunstâncias, fixar compensação eqüitativa à outra parte pelo serviço prestado, não estabelece regra semelhante, o que implica dizer que o prestador do serviço só se ressarcirá se configurar-se hipótese de enriquecimento sem causa. Sobre esse instituto, especificamente, nada há nos textos jurídicos romanos, salientando, porém, DI MARZO[22], sem citar as passagens em que se apóia, que as normas, a respeito, do Código Civil italiano respondem ao espírito da legislação pós-clássica. No mesmo sentido, também sem citar textos, se manifesta NARDI[23].

No tocante à lesão, o novo código Civil brasileiro, no artigo 157 se afastou dos sistemas alemão e italiano, e, portanto, do adotado pelo Código Civil português, que se orientou por ambos, já que observou a conceituação daquele, mas preferiu a solução deste. Assim, não se preocupa em punir a atitude maliciosa do favorecido – como sucede no direito italiano e no português, que, por isso mesmo, não deveriam admitir se evitasse a anulação se, modificado o contrato, desaparecesse o defeito –, mas, sim, em proteger o lesado, tanto que, ao contrário do que ocorre com o estado de perigo em que a outra parte tem de conhecê-lo, na lesão esse conhecimento é indiferente para que ela se configure, bastando, apenas, a ocorrência do requisito objetivo da manifesta desproporção entre a prestação e a contraprestação contraída por pessoa sob premente necessidade, ou por inexperiência. Ainda que haja a lesão, não se decretará a anulação do negócio jurídico se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito (§ 2º do artigo 157). O direito romano conheceu a laesio enormis que vem regulada em duas Constituições atribuídas a Diocleziano, as quais se encontram no C. 4, 44, 2 e 8 e que, segundo a opinião ainda majoritária dos romanistas, teriam sido interpoladas, tratando-se de inovação justinianéia. Essa lesão enorme ocorreria quando a coisa (e é controvertido se qualquer delas, ou apenas a imóvel) fosse vendida por menos da metade do seu efetivo valor, podendo o vendedor, por isso apenas, obter a rescisão da venda, salvo se o comprador preferisse complementar o que havia pago para chegar ao iustum pretium. Ademais, essas Constituições não aludem a esse remédio em favor do que comprou coisa que valia menos da metade do preço pago. Como se vê, a lesão prevista no novo Código Civil brasileiro, além de não se restringir ao contrato de compra e venda, difere ainda da romana por não exigir que, ainda quando se trate de compra e venda, a diferença entre o preço e o valor da coisa seja de mais da metade.

Em matéria de erro, o novo Código inova em vários pontos. O artigo 138 exige, para que seja anulável o negócio jurídico por erro substancial que este possa ser percebido por pessoa de diligência normal em face das circunstâncias do negócio, o que está em consonância com a concepção subjetiva mitigada do negócio jurídico. Ao enumerar, no artigo 139, os casos em que há erro substancial, supre omissão do Código de 1916 (o erro que diz respeito à identidade da pessoa a quem se refere a declaração de vontade), e determina que, tanto nesse caso, quanto na hipótese de erro sobre qualidade essencial dessa mesma pessoa, é mister, para ser substancial, que a falsa identidade ou a qualidade essencial tenha influído, de modo relevante, na declaração de vontade. Por outro lado, no inciso III desse mesmo artigo 139, contempla o erro de direito nos moldes do Código Civil italiano (art. 1.249, 4). Em seguida, no artigo 140, corrige impropriedade em que incidiu o artigo 90 do Código de 1916, substituindo falsa causa por falso motivo. Já o artigo 143 é expresso no sentido de que o erro de cálculo apenas autoriza a retificação da declaração de vontade. E é também de notar-se que o novo Código, na esteira do de 1916, atribui o mesmo efeito (a anulabilidade) ao erro-obstáculo (também denominado erro na declaração) e ao erro vício (ou erro-motivo), não tratando das duas figuras separadamente. Por isso seu artigo 144 – que estabelece que “o erro não prejudica a validade do negócio jurídico, quando a pessoa, a quem a manifestação de vontade se dirige, se oferecer para executá-la na conformidade da vontade real do manifestante” – se dirige a ambas as espécies de erro, e não apenas ao erro-obstáculo, à semelhança do disposto no artigo 1.432 (combinado com o artigo 1.433 no particular) do Código Civil italiano. No direito romano, quanto ao requisito da percepção do erro pela outra parte, DI MARZO[24] o considera substancialmente conforme ao pensamento romano, citando o D. 18.1.9.2, no caso em que alguém venda vinagre por vinho. No mesmo sentido NARDI[25], sem citar fonte romana. No tocante ao erro essencial quanto à pessoa, há que distinguir, no direito romano, quando se trata de erro dessa natureza cometido em negócio jurídico mortis causa, em que este é inválido (D. 28.5.9pr.), e em negócio jurídico inter vivos, hipótese em que este só é inválido quando a identidade da pessoa é determinante para o consentimento, como sucede em caso de empréstimo em que a solvência do devedor tem particular importância para o credor (D. 47.2.52.21 e D. 47.2.67(66).4). No que concerne ao erro de direito como defeito do negócio jurídico, os romanos levavam em consideração o homem médio (D. 22.6.3.1), para considerar que a ignorância de direito em que este não incorresse prejudicaria o que nela incorresse, excetuando, porém, dessa regra algumas categorias de pessoas (assim, as mulheres, os menores, os soldados e os rústicos) que podiam invocá-la em seu favor para evitar dano e não para conseguir vantagem (D. 22.6.9pr. e D. 22.6.7). Também a retificação do negócio jurídico quando há erro de cálculo está em conformidade com o que preceitua o C. 2, V, 1, sendo, porém, de notar-se que o texto do artigo 143 do Código Civil brasileiro, ao contrário do que ocorre, de certa maneira, com o artigo 1.430 do Código Civil italiano, não se refere à ressalva contida na citada fonte romana, pela qual, se por erro de cálculo se prometeu como devida uma quantidade que não o era, cabe a condictio para a liberação. Finalmente, nada há nas fontes romanas quanto à norma do artigo 144 do novo Código Civil brasileiro.

Manteve o novo Código, no concernente ao dolo, a distinção – acolhida pelo Código de 1916, que, nesse ponto, se afastou o BGB – entre dolus causam dans e dolus incidens, somente considerando o primeiro como vício da vontade, e, portanto, como capaz de acarretar a anulabilidade do negócio jurídico. Nessa seção, aliás, introduziu poucas alterações, a saber: no que diz respeito ao dolo de terceiro (artigo 148), e na distinção que faz (artigo 149), quanto ao dolo de terceiro, entre representante legal e voluntário. Merece destaque o disposto no artigo 150: “se ambas as partes procederam com dolo, nenhuma pode alegá-lo, para anular o negócio, ou reclamar indenização”. No direito romano, não se encontra nas fontes base suficiente para sustentar que seja romana a distinção entre dolus causam dans e dolus incidens, que, em verdade, vem dos glosadores até os pandectistas, embora já se tenham invocado para assentar essa distinção no direito romano dois textos: D. 19.1.11.4 (para o dolus causam dans) e D. 19.1.13.4 (para o dolus incidens). Ademais, no direito romano antigo, o dolo não implicava a invalidade do negócio jurídico, seja pelo formalismo então imperante, seja pela falta de diligência do enganado, mas, além de ser possível prevenir-se do dolo inserindo a stipulatio uma cláusula doli, nos iudicia bonae fidei o iudex poderia levar em consideração a existência do dolo; posteriormente, no ius honorarium, o pretor concedeu ao enganado três instrumentos processuais: a actio doli, a exceptio doli e a restitutio in integrum propter dolum, que permitiam evitar os danos patrimoniais dele decorrentes, sem, portanto, acarretar a invalidade do negócio jurídico (D. 4.3.38); e, no direito justinianeu, é que o dolo se considera como vício da declaração de vontade de que resulta a invalidade do negócio jurídico em que ele ocorre. Note-se, afinal, que a norma do artigo 148 do novo Código Civil brasileiro, à semelhança da do artigo 1.439, 2, do Código Civil italiano, encontra base romanística no D. 4.3.18.3.

No que concerne à coação, o novo Código Civil brasileiro apresenta duas alterações dignas de menção. No parágrafo único do artigo 151, admite que haja coação ainda quando o dano diga respeito a pessoa que não pertença à família do coacto, cabendo ao juiz, com base nas circunstâncias, decidir se ela se configurou. E se modificou substancialmente a disciplina da coação exercida por terceiro: no Código de 1916, a coação, nesse caso, sempre vicia o negócio jurídico, ao passo que, pelo sistema do novo, o negócio subsiste se a coação decorrer de terceiro sem que dela tivesse ou devesse ter conhecimento a parte a quem aproveite, mas o autor da coação responderá por todas as perdas e danos do coacto. No direito romano, há também coação quando o dano dizia respeito à pessoa dos filhos do coacto (D. 4.2.8.3). De outra parte, no direito clássico, no âmbito do ius civile, o negócio jurídico, ainda quando houvesse coação, era válido, mas, na esfera do ius honorarium, o pretor concedia, quando a coação decorria de terceiro, a actio quod metus causa, ação que, por ser penal, se propõe contra o que causou a coação e que visa a uma reparação (o quádruplo do valor da coisa, se proposta dentro de um ano: se depois, apenas o valor da coisa); no direito justinianeu, ao que parece, o negócio jurídico celebrado sob coação é válido, mas é passível de anulação, passando a actio quod metus causa a ter o caráter de actio in rem scripta.

O último dos defeitos de cuja disciplina trata o novo Código é a fraude contra credores. Manteve ele a anulabilidade como conseqüência desse defeito, embora reproduza, no artigo 162, a regra do artigo 110 do Código de 1916, na qual PONTES DE MIRANDA identifica hipótese de ineficácia relativa. Algumas inovações são dignas de realce: o artigo 158, § 1º, ampliou a legitimação ativa para a propositura da ação Pauliana, atribuída que foi, também, aos credores cuja garantia se tornar insuficiente; e o parágrafo único do artigo 160 admitiu que o adquirente dos bens do devedor insolvente, se o preço for inferior ao corrente, poderá conservá-los, se depositar em juízo o que lhes corresponda ao valor real. Nas fontes romanas, a respeito do conteúdo dessas normas, não se encontram textos de que se possam extrair iguais preceitos.

 

 

7. – A invalidade do negócio jurídico

 

À semelhança do Código de 1916, duas são as gradações de invalidade a que alude o novo Código: a nulidade e a anulabilidade.

Nesse capítulo há várias inovações.

Entre as relativas aos casos de nulidade do negócio jurídico, destaca-se, no artigo 166, III, “a”, do negócio jurídico em fraude à lei imperativa (fraus legi facta). Quando ela ocorre, ao invés de sua sanção ser a mesma que se comina à violação direta (ou seja, a aplicação do princípio da exaequatio do agere in fraudem legis ao contra legem agere), será sempre a nulidade do negócio fraudulento, que, assim, é punido mais severamente do que o ato de violação direta se esta der margem apenas à anulabilidade. Já com relação ao direito romano, demonstrou ROTONDI, em seu livro Gli Atti in frode alla lege nella dottrina romana e nella sua evoluzione posteriore, e o reafirmou posteriormente no escrito Ancora sulla genesi della teoria della fraus legi (republicado em seus Scritti Giuridici)[26] «que a doutrina dos atos in fraudem legis, como concebida e aplicada pelos autores e pela prática no direito intermédio e moderno, é absolutamente estranha às fontes romanas, nas quais aquela expressão não significa coisa diversa de uma verdadeira e própria violação da lei», e por isso, por via de regra, se sujeita às sanções legislativas aplicadas a esta. Daí, dizer BERGER[27] que «o agir in fraudem legis era considerado simplesmente uma violação da lei e produzia aquelas conseqüências que eram previstas pela lei». Conseqüentemente, a violação direta e a indireta não eram tratadas como figuras diversas a produzir, por identidade de fins, a mesma sanção (que é o que dá margem à exaequatio acima referida), mas sim figuras que se consideravam indistintamente como violadoras da mesma lei e, por isso, por esta punidas.

Da simulação, que no Código Civil de 1916 era defeito do negócio jurídico que acarretava a anulabilidade quando não fosse inocente, resulta, no novo código, sempre a nulidade do negócio jurídico simulado, quer seja a simulação absoluta quer seja relativa, sendo que, neste último caso,subsiste o negócio que se dissimulou, se válido na substância e na forma (artigo 167, caput). O § 2º desse dispositivo ressalva os direitos de terceiros de boa-fé em face dos contraentes do negócio jurídico simulado, no direito romano, em síntese, se tem que, no período pré-clássico, o negócio jurídico simulado era válido, uma vez que, em virtude do formalismo primitivo, a simulação era irrelevante; no período clássico, embora não se tenha estabelecido a regra geral de que o negócio simulado era nulo, não só há nas fontes decisões nesse sentido (assim, D. 18.1.36; D.18.2.4.5; D. 23.2.30; D. 44.7.54, dentre várias outras), mas também à nulidade dos negócios jurídicos simulados conduzia o princípio da veritas actus relativo a contratos consensuais e reais (o contrato de compra e venda sem preço era nulo); finalmente, na época justinianéia, surge o preceito geral de que o negócio simulado é nulo (cfe. A rubrica do C. I.22 – Plus valere quod agitur, quam quod simulate concipitur), sendo que, em caso de simulação relativa, o negócio dissimulado é válido se, além de estarem seus elementos essenciais contidos na simulação, não infringir a lei, a moral ou os bons costumes.

Inovando, o artigo 169 determina que “o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo”. Em se tratando de negócio jurídico nulo, também no direito romano se acha a regra de Paulo, segundo a qual “quod initio viciosum est, non potest tractu temporis convalescere” (D. 50.17.29). Todavia, em hipóteses excepcionais, e por determinação do ordenamento jurídico, pode validar-se um negócio jurídico originariamente nulo com a confirmação dele pela pessoa que possa valer-se de sua nulidade (cfe. Fr. Vat. 294; D. 31.77.17; D. 32.33.2; D. 34.2.13).

No artigo 170, disciplina-se a conversão do negócio jurídico nulo nestes termos: “se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade”. Em sentido semelhante o direito romano admitia a conversão do negócio jurídico nulo, exigindo, para isso, a observância dos seguintes requisitos: a) – que ela fosse autorizada pelo ordenamento jurídico: b) – que o negócio jurídico nulo contivesse os elementos essenciais do negócio em que aquele iria converter-se; e c) – que se pudesse presumir que teriam as partes querido o negócio jurídico em que se converteria o nulo, se tivessem sabido da sua nulidade, e isso porque esse novo negócio era apto a propiciar a elas o mesmo fim prático que perseguiam com o antigo. Um exemplo de conversão com a verificação desses requisitos é o que se encontra no D. 2.14.27.9 e no D. 18.5.5pr., a saber: a acceptilatio – um dos modos de extinguir a obrigação –, que, por qualquer razão, fosse nula, podia ser tomada como pacto de não pedir (pactum de non petendo) firmado pelas partes.

Permite o artigo 176 que “quando a anulabilidade do ato resultar da falta de autorização de terceiro, será validado se este a der posteriormente”. No direito romano, em que se tem que o negócio jurídico, na falta da necessária autorização de terceiro, era tido como incompleto ou claudicante, podia ser ele validado se a autorização fosse dada posteriormente á sua celebração (vide, por exemplo, D. 14.6.7.15, que trata da hipótese de empréstimo que, feito a filius familias sem o consentimento do pater, se validava se este, posteriormente, o desse expressa ou tacitamente). Esse ato, que supria tal falta, é denominado, nas fontes, ratihabitio, expressão que é também utilizada em textos jurídicos romanos para designar o ato de confirmação do negócio jurídico.

Dispõe-se, no artigo 178 do novo Código Civil brasileiro, que o prazo para pleitear-se a anulação do negócio jurídico por defeitos deste é de decadência e não de prescrição. No período pré-clássico do direito romano, as ações da lei eram perpétuas. No processo formulário, as ações civis, em regra, são perpétuas (Gaio, Institutas IV, 110), ao passo que as ações pretorianas, em geral, devem ser propostas dentro de prazo curto (as mais das vezes, um ano), o mesmo ocorrendo com vários interditos (como o interdictum fraudatorium) e as restitutiones in integrum. Nos períodos pós-clássico e justinianeu, denominam-se actiones perpetuae as sujeitas a prescrição de 30 ou 40 anos, estando as actiones temporales sujeitas a prescrição mais breve. No processo formulário, como acentua AMELOTTI[28], a palavra praescriptio no sentido de perda da ação por decurso de tempo é estranha a ele, só tendo surgido na cognitio extra ordinem. Adverte ainda o mesmo autor[29] que “a regulamentação moderna da prescrição, enquanto não tem pontos de contacto com as prescrições do processo formulário, é claramente inspirada na prescrição justinianéia”, e acrescenta que numerosos princípios seus permaneceram válidos, como os do impedimento, da suspensão e da interrupção da prescrição, além de não ser pronunciável de ofício. E, em se tratando de instrumentos processuais contra os defeitos dos negócios jurídicos (assim, no tocante ao dolo, à coação e à fraude contra credores, a actio de dolo e a actio quod metus causam gestum erit, bem como a restitutio in integrum e o interdictum fraudatorium), eram eles meios processuais pretorianos no período clássico, e, portanto, deviam ser exercidos em prazos breves, e, nos períodos pós-clássico e justinianeu, as duas ações acima referidas (que da natureza penal que tinham no direito clássico passaram a ter a função restitutória da in integrum restitutio), bem como, na época de Justiniano, a actio Pauliana, que substituiu o interdictum fraudatorium, se sujeitam a breve prazo de prescrição. Note-se, ainda, que há romanistas, como BETTI[30], que sustentam que, no processo formulário, as ações pretorianas enquanto anuais estavam sujeitas à decadência. De qualquer sorte, porém, no período pós-clássico, e principalmente no justinianeu, o que há, com relação ao decurso do tempo no tocante à propositura de qualquer ação, é – ao contrário do que ocorre com as ações referidas nesse artigo 178 do novo Código Civil brasileiro – a prescrição e não a decadência.

Finalmente, o artigo 184 preceitua que, para a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicar na parte válida se esta for separável, se há de respeitar a intenção das partes. No direito romano, o princípio “utile per inutile non vitiatur” é adotado claramente no D. 45.1.1.5, quando o negócio jurídico parcialmente nulo não era incindível. Nas fontes romanas, no entanto, não se encontra texto expresso que admita, para não-aplicação desse princípio, que se leve em conta a intenção das partes para a aferição da incindibilidade do negócio jurídico parcialmente nulo.

 

 



 

[1] Pandekten, erster Band, § 129, 475.

 

[2] Das Anwendungsgebeit der Vorschriften für die Rechtsgeschäfte, Breslau 1901; Willenserklärung und Willensgeschäft, Berlin 1907; e Das rechtswirksame Verhalten, Berlin 1939.

 

[3] Die Rechtshandlungen in engeren Sine, München 1912.

 

[4] A propósito do desenvolvimento desses estudos, vide Soriano Neto, A construção científica alemã sobre os atos jurídicos em sentido estrito e a natureza jurídica do reconhecimento da filiação ilegítima, separata, Recife 1957; Mirabelli, L’atto non negoziale nel diritto privato italiano, Napoli 1955; Panuccio, Le dichiarazioni non negoziali di volontà, Milano 1966; Castro y Bravo, El negocio jurídico, 21-50, Madrid 1967; Flume, Das Rechtsgeschäft, § 9º, 104 e seguintes.

Combatem a distinção entre negócio jurídico e ato jurídico em sentido estrito Andreoli, Contributo alla teoria dell’adempimento, 52 e seguintes, Padova 1937; e José Paulo Cavalcanti, A representação voluntária do direito civil – a ratificação no direito civil, 40-42, nota 68, Recife 1965.

 

[5] Expressão divulgada no Brasil especialmente por Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, tomo II, 3a ed., § 209, I, 372, Rio de Janeiro 1970. Outras denominações são, também, utilizadas pelos autores. Assim, Enneccerus-Nipperdey, Lehrbuch des Bürgerlichen rechts – Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts, erster Band, zweiter Halbband, § 137, IV, 2, “b”, 579 – que consideram pleonástica a expressão atos-fatos (Tathandlungent), ibidem, nota 25 – preferem a denominação Realakte (Pontes de Miranda, porém, ob, cit., § 21, I, 373-4, considera os atos reais – também denominados atos naturais ou atos meramente externos – como espécie do gênero atos-fatos jurídicos). A designação atos meramente externos (rein äussere Handlungen), para indicar os atos-fatos jurídicos, se encontra em Manigk (cfe. Enneccerus-Nipperdey, ob. cit., § 137, IV, 2, 579, nota 25). Meros atos jurídicos é como os denomina Cariota Ferrara (El negocio jurídico, trad. Albaladejo, 31, Madrid 1956).

 

[6] 5ª ristampa, III, Soc. Ed. Del “Foro Italiano”, Roma 1950.

 

[7] Zur lehre vom Rechtsgeschäft im klassischem Recht, in Festschrift Fritz Schulz, vol. I, 148 e seguintes, Hermann Böhlaus Nachfolger, Weimar 1951.

 

[8] Istituzioni di Diritto Romano, I, ristampa inalterata della seconda edizione, § 58, 133, nota 4, Padova 1947.

 

[9] Corso di Diritto romano, Parte Generale – fatti giuridici, negozi giuridici, atti illeciti –, Parte Speciale – la compravendita, 117-118, Milano s/data.

 

[10] Istituzioni di Diritto Romano, nº 58, 228, Milano 1990.

 

[11] Sistema del Diritto Romano Attuale, vol. III, trad. SCIALOJA, § 132, 330 e seguintes.

 

[12] Le Basi Romanistiche del Codice Civile, 245, Torino 1950.

 

[13] Osservazioni sulla “bona fides” nel diritto romano obbligatorio, in Studi in onore di Vicenzo Arangio-Ruiz nel XLV anno del suo insegnamento, I, 423-443, Napoli s/data.

 

[14] Ob. cit., 256.

 

[15] Codice Civile e Diritto Romano, 67, Milano 1997.

 

[16] Istituzioni di Diritto Romano, I, 2a ed., 161, Roma 1928.

 

[17] Ob. cit., nº 112, 379-389.

 

[18] Ob. cit., nº 51, 209-210.

 

[19] Ob. cit., II, 547.

 

[20] Sucessione testamentária – Donazioni, 571 e seguintes, Milano 1943.

 

[21] Manual do Código Civil Brasileiro, Parte Geral, Dos Fatos Jurídicos, vol. III, parte primeira, 2a ed., 378, Rio de Janeiro 1929.

 

[22] Ob. cit., 265.

 

[23] Ob. cit., 70.

 

[24] Ob. cit., 261.

 

[25] Ob. cit., 69.

 

[26] Vol. III, 9 e seguintes, Milano 1922.

 

[27] Encyclopedic Dictionary of Roman Law, verbete fraus legi facta, 477, Philadelphia 1953.

 

[28] La prescrizione delle azioni in diritto romano, 8, Milano 1958.

 

[29] Ob. cit., 268.

 

[30] Ob. cit., vol. I, 49, nota 35, 92.