ds_gen N. 6 – 2007 – Memorie//Tribunato-plebe

 

poletti-piccola.jpgRonaldo Rebello De Britto Poletti*

Universidade de Brasília

 

O tribuno da plebe e o defensor do povo na Constituição da República Bolivariana da Venezuela**

 

 

Sumário: 1. O espírito bolivariano. – 2. O referendo popular. – 3. O povo. Vontade e soberania popular. – 4. Democracia participativa. Plurietnia. Revogabilidade dos “mandatos”. – 5. Estado de Justiça e não mero Estado de Direito. – 6. Estado federal descentralizado. – 7. O Poder Público. – 8. O Poder Cidadão e o Conselho Moral Republicano. – 9. Observações finais.

 

 

1. – O espírito bolivariano

 

A Constituição da República Bolivariana da Venezuela parece corresponder ao seu título. A Carta é mesmo republicana e, em grande parte, inspirada nas idéias políticas propostas por Simón Bolívar, o Libertador. Dois pontos precisam ser realçados desde logo. O primeiro consiste em que não se discute, aqui e nesta oportunidade, a questão da eficácia da Constituição em tela. O segundo, em que a adoção das idéias bolivarianas e do modelo republicano romano, embora não sendo plena nem absoluta, tem em Bolívar e, por conseqüência, no Direito Público Romano a sua inspiração.

Na verdade, há inúmeros pontos do texto que indicam o modelo político e jurídico na linha de Rousseau – Bolívar em oposição aos postulados liberais do caminho de Montesquieu, Sieyès e Constant[1].

É visível o esforço constante de adaptar o espírito bolivariano à realidade latino-americana, o que significa inspirar-se na constituição romana, a qual, segundo Bolívar, caracterizou-se pelo exercício do poder pelo povo em um nível jamais superado na história.

A adesão às idéias bolivarianas é reiterada em inúmeros pontos:

Logo no art. 1º está dito: «A República ... fundamenta seu patrimônio moral e seus valores de liberdade, igualdade, justiça e paz internacional, na doutrina de Simon Bolívar, o Libertador».

O espírito bolivariano aparece, ainda, como não poderia deixar de ser, no propósito de promover a cooperação pacífica entre as nações para impulsionar e consolidar a integração latino-americana (preâmbulo), em uma projeção educacional e cultural.

O ensino dos princípios do ideário bolivariano é obrigatório nas instituições de ensino públicas e privadas (art. 107).

A educação, definida como um serviço público, está fundamentada no respeito a todas as correntes do pensamento, com a finalidade de desenvolver o potencial criativo de cada ser humano e o pleno exercício de sua personalidade em uma sociedade democrática baseada na valoração ética do trabalho e na participação ativa, consciente e solidária dos processos de transformação social consubstanciados nos valores da identidade nacional e como uma visão latino-americana e universal (art. 102).

Assim, dá-se nas relações internacionais uma atenção especial à integração dos povos americanos. O texto constitucional proclama (art. 153) que a República promoverá e favorecerá a integração latino-americana e caribeña, intentando avançar até a criação de uma comunidade de nações, defendendo os interesses econômicos, sociais, culturais, políticos e ambientais da região. A República poderá subscrever tratados internacionais que conjuguem e coordenem esforços para promover o desenvolvimento comum de suas nações e que assegurem o bem estar dos povos e a segurança coletiva de seus habitantes. Para esses fins, a República poderá atribuir a organizações supranacionais, mediante tratados, o exercício das competências necessárias para levar a cabo esses processos de integração. Dentro das políticas de integração e união com a América Latina e o Caribe, a República privilegiará relações com a América Espanhola, procurando uma política comum de toda a nossa América Latina.

 

2. – O referendo popular

 

O título da própria Carta há de significar por si só alguma coisa, porém mais do que isso está na circunstância de que a Constituição entrou em vigor, somente, depois de sua aprovação pelo povo, mediante referendo previsto em dispositivo final.

O caráter popular da Constituição está presente na estrutura do Poder Público, especialmente no que ali se denomina de Poder Cidadão (ver adiante).

Aliás, o referendo popular vem disciplinado no texto constitucional, indicando a concreção da idéia de uma democracia direta, a qual vem referida como democracia participativa.

«As matérias de especial transcendência nacional poderão se submetidas a referendo consultivo por iniciativa do Presidente ou Presidente da República no Conselho de Ministros; por acordo da Assembléia Nacional, aprovado pelo voto da maioria de seus integrantes; ou por solicitação de um número não inferior a dez por cento dos eleitores e eleitoras inscritas no registro civil e eleitoral.

Podem ser submetidas, também, a referendo consultivo as matérias de especial transcendência municipal e paroquial e estadual. A iniciativa é cometida à Junta Paroquial, ao Conselho Municipal e ao Conselho Legislativo, por acordo de um terço de seus integrantes; o Alcaide e o Governador do Estado ou por solicitação de um número não inferior a dez por cento do total de inscritos na circunscrição correspondente» (art. 71).

São, ainda, submetidos a referendo os projetos de lei em discussão na Assembléia Nacional, quando assim o decidirem dois terços dos membros da Assembléia (art. 73).

Os tratados, convênios ou acordos internacionais que puderem comprometer a soberania nacional ou transferir competências a órgãos supranacionais, poderão ser submetidos a referendo por iniciativa do Presidente, pelos dois terços dos membros da Assembléia ou por quinze por cento dos eleitores.

 

3. – O povo. Vontade e soberania popular

 

Há de considerar-se, ainda, o preâmbulo que não se refere, primordialmente, a representantes, mas ao povo identificado como Poder Constituinte.

Diz o texto preambular, relevante como exórdio dos princípios e valores que deverão indicar o caminho do que seria “constitucionalizado”:

«O povo da Venezuela, no exercício de seus poderes criadores e invocando a proteção de Deus, o exemplo histórico de nosso Libertador Simon Bolívar e o heroísmo e sacrifício de nossos antepassados aborígenes e dos precursores e forjadores de uma pátria livre e soberana ...».

Salientem-se os «poderes criadores do povo», os únicos verdadeiramente constituintes. Certo, ainda, que o art. 1º reafirma a fidelidade à doutrina de Bolívar. Logo no art. 3º insiste-se «no exercício democrático da vontade popular», enquanto no art. 5º consta a clara adesão à soberania popular: «A soberania reside intransferivelmente no povo, que a exerce diretamente na forma prevista nesta Constituição e na lei, e, indiretamente, mediante sufrágio, pelos órgãos que exercem o Poder Público. Os órgãos do Estado emanam da soberania popular e a ela estão submetidos».

Na Carta Constitucional da Bolívia (1826), o Libertador pretendeu instituir uma forma de governo bastante diferente dos modelos então vigentes na Europa. Por isso estabelece que «O governo da Bolívia é popular representativo» e, em outro passo, «o poder supremo se divide para seu exercício em quatro seções: Eleitoral, Legislativa, Executiva e Judicial».

 

4. – Democracia participativa. Plurietnia. Revogabilidade dos “mandatos”

 

Acena, ainda, o preâmbulo com o regime político e o Estado que se pretende regular constitucionalmente, revelando valores presentes naquela linha já referida (Rousseau-Bolívar), o que significa, também, anunciar paradigmas do Direito Público Romano.

Assim é que ali se fala em «refundar a República» para criar não, simplesmente, uma democracia sem atributos, o que na contemporaneidade poderia sugerir, ainda que de maneira equivocada, um sistema liberal, porém uma «sociedade democrática, participativa e protagônica, multiétnica e pluricultural». Multiétnica e pluricultural já anunciada na invocação do heroísmo e sacrifício dos aborígenes.

A participação e protagonismo do povo, no exercício de sua soberania, se dá em dois níveis: o político e o social e econômico.

No político, pela eleição para os cargos públicos, pelo referendo, pela consulta popular, pela revocatória do mandato, pela iniciativa legislativa. No social e econômico, pelas instâncias de atenção cidadã, a co-gestão, o cooperativismo, incluindo o financeiro, as caixas econômicas, a empresa comunitária e demais formas associativas inspiradas pelos valores da mútua cooperação e solidariedade (art. 70).

Um dispositivo relevante em atinência à questão da revogação dos mandatos e da submissão dos representantes à vontade dos representados, portanto em dissonância com a técnica liberal da irresponsabilidade total dos deputados e da proibição do mandato imperativo, é o art. 197: os deputados à Assembléia estão obrigados a trabalhar com dedicação exclusiva, em benefício dos interesses do povo e a manter uma vinculação permanente com seus eleitores, atendendo suas opiniões e sugestões, mantendo-os informados a respeito de sua gestão e da Assembléia. Devem, anualmente, dar conta de sua gestão aos eleitores da circunscrição pela qual foram eleitos e estarão submetidos ao referendo revocatório do mandato. E o art. 198: O deputado cujo mandato for revogado, não poderá concorrer a cargos de eleição popular no período subseqüente.

Um aspecto interessante de participação popular reside no recrutamento dos magistrados para o Tribunal Supremo de Justiça. Eles são eleitos por um período de doze anos. As candidaturas são postuladas perante o Comitê de Postulações Judiciais, por iniciativa própria ou por organizações vinculadas à atividade jurídica. O Comitê, ouvida a comunidade, efetuará um pré-seleção para sua apresentação ao Poder Cidadão (ver adiante), o qual efetuará uma segunda seleção que será apresentada à Assembléia Nacional, a qual efetuará a seleção definitiva. Os cidadãos poderão exercer fundamentadamente objeções a qualquer dos candidatos perante o Comitê ou perante a Assembléia Nacional. Os magistrados do Tribunal poderão ser removidos pela Assembléia Nacional mediante uma maioria qualificada com prévia audiência concedida ao interessado, em caso de faltas graves já qualificadas pelo Poder Cidadão (arts. 264-265).

É sintomático que uma das competências da Assembléia Nacional seja a de organizar e promover a participação cidadã nos assuntos de sua competência (art. 187, 4).

Proclama, outrossim, a Constituição (art. 121) que os povos indígenas têm direito a manter e desenvolver sua identidade étnica e sua cultura, cosmovisão, valores, espiritualidade e seus lugares sagrados e de culto. Os povos indígenas (art. 123) têm direito a manter e promover suas próprias práticas econômicas baseadas na reciprocidade, na solidariedade e intercâmbio. O Estado reconhecerá a existência dos povos e comunidades indígenas, sua organização social, política e econômica, suas culturas, usos e costumes, idiomas e religiões, assim como seu hábitat e direitos sobre as terras que ancestral e tradicionalmente ocupam e que são necessárias para desenvolver e garantir suas formas de vida (art. 119). Os povos indígenas têm direito à participação política (art. 125). As autoridades legítimas dos povos indígenas poderão aplicar em seu habitat instâncias de justiça com base em suas tradições ancestrais e que somente afetem a seus integrantes, segundo suas próprias normas e procedimentos, sempre que não sejam contrários a esta Constituição, à lei e à ordem pública (art. 260).

Dessa maneira, estão presentes não apenas os aspectos pluriétnicos e pluriculturais do Império Romano, como a idéia da liberdade dos antigos, segundo a explicação de Benjamin Constant, consistente na participação do povo nas decisões do governo. A idéia da democracia participativa está presente, e de forma enfática, na proclamação que conceitua o governo como «sempre democrático, participativo, eletivo, descentralizado, alternativo, responsável, pluralista e de mandatos revocáveis» (art. 6º).

Não obstante seja possível encontrar suas raízes na idéia democrática romana, a revogabilidade dos mandatos foi uma das criações do liberalismo político para atenuar a crítica dirigida à ficção da representação política, dada pelo instrumento do chamado «mandato de direito público», em tudo diferente do mandato civil, não somente porque não previa a sua revogabilidade pelo outorgante, como por que se proibira fosse ele mandato imperativo (os eleitos não recebem ordem dos eleitores e são irresponsáveis tecnicamente). A Constituição Bolivariana da Venezuela vai além da revogabilidade dos mandatos dos representantes, porque afirma que todos os cargos e magistraturas «de eleição popular são revogáveis», por iniciativa popular de um referendo.

 

5. – Estado de Justiça e não mero Estado de Direito

 

Mais do que isso, o preâmbulo substitui a fórmula comum da liberal democracia de “Estado de Direito” e até de “Estado Democrático de Direito” por uma expressão mais significativa: «Estado de Justiça». Assim, as intenções reveladas no preâmbulo não se satisfazem com um mero Estado de Direito, o governo das leis e não dos homens, pretende mais do que isso, intenta um Estado de Justiça, abrindo-se a perspectiva de uma discussão a respeito da obrigação de a sociedade política não ficar passiva, fornecendo tão-somente, o ordenamento jurídico, mas indo além para a realização de uma Justiça social um pouco diferenciada das preocupações sociais assumidas, é verdade, pelo liberalismo na sua evolução para a democracia social. Daí, o art. 2º reiterar a idéia de um «Estado democrático e social de Direito e de Justiça».

 

6. – Estado federal descentralizado[2]

 

Um ponto relevante no texto constitucional venezuelano é a idéia de descentralização, presente em vários de seus dispositivos e instrumentos institucionais (art. 4º).

A Assembléia Nacional, por maioria de seus integrantes, poderá atribuir aos Municípios ou aos Estados determinadas matérias da competência nacional, a fim de promover a descentralização (art. 157).

A descentralização, como política nacional, deve aprofundar a democracia, aproximando o poder à população e criando as melhores condições, tanto para o exercício da democracia, como para a prestação eficaz e eficiente dos serviços estatais (art. 158).

Um órgão importante, o Conselho Federal de Governo, é incumbido do planejamento e coordenação de políticas e ações para o desenvolvimento do processo de de descentralização e transferência de competências do Poder Nacional para os Estados e Municípios (art. 185).

 

7. – O Poder Público

 

O Poder Público, poderíamos dizer o poder do povo, é distribuído pelo critério da jurisdição territorial, entre o Poder Municipal, o Poder Estadual e o Poder Nacional.

O Poder Nacional, se divide em Legislativo, Executivo, Judicial, Cidadão e Eleitoral.

Dessa maneira a idéia da tripartição de poderes não está presente na Constituição da Venezuela.

Na citada Constituição da Bolívia de 1826, o dogma dos três poderes também é substituído, mas por quatro seções e não cinco, como já acima referido: Eleitoral, Legislativo, Executivo e Judicial. O Corpo Eleitoral era composto por eleitores nomeados pelo povo.

Anota-se, a propósito, a influência romanista, mais visível na Constituição da Bolívia, na denominação das três Câmaras que compõe o Poder Legislativo: a Câmara dos Tribunos, a dos Senadores e a dos Censores.

O poder de administrar a justiça emana dos cidadão, a qual justiça se distribui em nome da República pela autoridade da lei (art. 252).

É da competência do Poder Público Nacional a organização e administração da Justiça, do Ministério Público e da Defensoria do Povo (art. 156, 33).

 

8. – O Poder Cidadão e o Conselho Moral Republicano

 

O Poder Cidadão é exercido pelo Conselho Moral Republicano integrado pelo Defensor do Povo, pelo Fiscal Geral e pelo Controlador Geral da República (art. 273).

Bolívar havia proposto um Poder Moral (projeto apresentado no Congresso de Angostura). Como em Roma, não haveria uma exata distribuição dos poderes. Os cônsules, o Senado, o Povo eram legisladores e magistrados. Todos participavam de todos os poderes.

Bolívar havia anotado, no discurso de Angostura, sobre a constituição romana que os cônsules, o senado, o povo, eram ora legisladores, ora magistrados, ora juízes. Todos participando de todos os poderes. Daí o Poder Eleitoral que exerceria funções legislativas e judiciais.

São órgãos do Poder Cidadão: a Defensoria do Povo, o Ministério Público e a Controladoria Geral da República. Seus titulares serão designados pelo Conselho Moral Republicano, por período de um ano, permitida a reeleição (art. 273).

O Poder Cidadão é independente e seus órgãos gozam de autonomia funcional, financeira e administrativa (art. 273).

Incumbe aos órgãos do Poder Cidadão: prevenir, investigar e sancionar os fatos que atentem contra a ética pública e moral administrativa; velar pela boa gestão e pela legalidade do uso do patrimônio público, o cumprimento e a aplicação do princípio da legalidade em toda a atividade administrativa do Estado, promover a educação como processo criador da cidadania, assim como a solidariedade, a liberdade, a democracia, a responsabilidade social e o trabalho (art. 274).

Os representantes do Conselho Moral Republicano formularão às autoridades e funcionários da Administração Pública e as Advertências, as advertências sobre as faltas no cumprimento de suas obrigações legais. Não acatadas estas advertências, o Conselho Moral Republicano poderá impor as sanções estabelecidas na lei. Na hipótese de contumácia, o Presidente do Conselho Moral Republicano apresentará uma informação ao órgão onde estiver situado o funcionário público, para que se tomem as correções e as providências de acordo com o caso, sem prejuízo das sanções legais (art. 275).

O Presidente do Conselho e dos demais titulares dos órgãos do Poder Cidadão apresentarão um relatório anual perante a Assembléia nacional e apresentarão outros a qualquer momento, desde que solicitados pela Assembléia. Todos os relatórios serão publicados (art. 276).

Todos os funcionários da Administração Pública estão obrigados, sob pena de sanção, a colaborar, em caráter preferencial e urgente, com o Conselho Moral Republicano (art. 277).

O Conselho Moral Republicano promoverá atividades pedagógicas dirigidas ao conhecimento e estudo da Constituição, ao amor à pátria, às virtudes cívicas e democráticas, aos valores transcendentais da República e à observância e respeito dos direitos humanos (art. 278).

O Conselho Moral Republicano convocará um comitê de avaliação das postulações do Poder Cidadão. Esse comitê, integrado por representantes de diversos setores da sociedade, dará início a um procedimento público, cujo resultado final será uma lista tríplice para a escolha de cada um dos titulares dos órgãos do Poder Cidadão, que será submetida à consideração da Assembléia Nacional, que, mediante o voto favorável de um terço de seus integrantes, escolherá em um lapso não maior de trinta dias contínuos, o titular do órgão do Poder Cidadão, que esteja em consideração. Se, nesse lapso, a Assembléia não decidir a respeito, o Poder Eleitoral submeterá a lista tríplice a consulta popular (art. 279).

A Defensoria do Povo tem a seu cargo a promoção, defesa e vigilância dos direitos de garantias estabelecidos na Constituição e dos Tratados Internacionais sob direitos humanos, além dos interesses legítimos, coletivos e difusos, dos cidadãos. A Defensoria do Povo será dirigida por um Defensor do Povo designado por um período de sete anos (art. 280).

São atribuições do Defensor do Povo:

velar pelo respeito e garantia dos direitos humanos, investigando, de ofício, ou a requerimento das partes, as denúncias que chegam a seu conhecimento (art. 281);

velar pelo correto funcionamento dos serviços públicos, amparar e proteger os direitos e interesses legítimos, coletivos e difusos, das pessoas contra as arbitrariedades desvio de poder e erros cometidos na prestação daquele serviço, interpondo as ações necessárias para exigir do Estado o ressarcimento aos administrados pelos danos e prejuízos que lhes sejam ocasionados em razão do funcionamento dos serviços públicos;

interpor as ações de inconstitucionalidade, amparo, hábeas corpus, hábeas data e demais ações ou recursos necessários para exercer as suas atribuições;

requerer ao fiscal ou fiscala geral da república para que promova as ações e recursos cabíveis contra aos funcionários públicos responsáveis pela violação ou desprezo pelos direitos humanos;

solicitar ao Conselho Moral Republicano que adote as medidas cabíveis quanto aos funcionários responsáveis pela violação ou desprezo aos direitos humanos;

solicitar ao órgão competente a aplicação de corretivos e sanções cabíveis pela violação dos direitos do público consumidor e usuário;

apresentar, perante os órgãos legislativos (nacionais, estaduais e municipais) projetos de lei visando a proteção progressiva dos direitos humanos;

velar pelos direitos dos povos indígenas e exercer as ações necessárias para usa garantia e efetiva proteção;

formular, perante os órgãos responsáveis, as observações e recomendações necessárias para melhor proteção dos direitos humanos. Para isto, desenvolverá mecanismos de comunicação permanente com os órgãos públicos ou privados, nacionais e internacionais, de proteção e defesa dos direitos humanos.

O Defensor do Povo gozará de imunidade no exercício de suas funções. Não poderá ser perseguido, detido, nem acionado por atos relacionados com atos relacionados com o exercício de sua função. Em todo caso, ele é jurisdicionado do Tribunal Supremo de Justiça (art. 282). Neste ponto fica clara a analogia, plenamente cabível com a sacralidade e inviolabilidade do Tribuno da Plebe.

Integram, como já vimos, o Poder Cidadão exercido pelo Conselho Moral Republicano, além do Defensor do Povo, o Fiscal Geral e o Controlador Geral da República. Esse Fiscal Geral tem sob a sua direção e responsabilidade, o Ministério Público e será designado para um período de 7 (sete) anos.

As atribuições do Ministério Público são comuns às do Ministério Público tradicional, enquanto a Controladoria Geral da União exerce uma função semelhante á da Justiça de Contas ou de órgãos de auditoria interna e controle externo na realização de despesas e na constituição da receita, tendo ademais, competência para corrigir as irregularidades e aplicar as sanções administrativas, além de representar ao Fiscal da República, na hipótese de crime.

O Ministério Público, a Defensoria do Povo e a Controladoria serão regulados por leis orgânicas, mantidas as vigentes do Ministério Público e da Controladoria. No que toca à Defensoria do Povo, seu titular será designado de maneira provisória pela Assembléia Nacional Constituinte (Disposições Transitórias).

 

9. – Observações finais

 

A Constituição Venezuelana não fala em Ditadura Republicana, mas em estados de exceção (art. 337). Aqui, as idéias de Bolívar não estão reproduzidas, pois ele comungava da idéia ditatorial no sentido romanista da expressão.

É possível, outrossim, construir que os órgãos do Poder Cidadão, portanto incluindo-se a Defensoria do Povo, exercem algo semelhante aos magistrados censores.

Pode-se, ainda, verificar, como já afirmamos, que o Defensor do Povo é intocável como o Tribuno da Plebe, em face da sua imunidade, a qual, aliás, é relativa.

Do ponto de vista da sacralidade, não parece que o Defensor detenha tal atributo, pelo menos pelo que se pode deduzir do texto constitucional.

Os poderes negativos podem ser visualizados nas atribuições cometidas ao Conselho Moral Republicano, especialmente do Defensor do Povo na defesa dos direitos humanos e na propositura de ações de inconstitucionalidade, amparo, habeas corpus e habeas data, seguidas de outras providências para responsabilizar os funcionários públicos, compreendidos os agentes políticos.

Na verdade, o Conselho Moral Republicano parece assumir uma feição semelhante ao Poder Neutro, concebido por Benjamin Constant, o que não deixa de ser estranho se considerarmos que o francês foi, por excelência, o teórico do liberalismo constitucional em oposição ao “constitucionalismo” romano. Um Poder acima dos outros (três) Poderes, capaz de coordená-los. Algo muito próximo do Poder Moderador, previsto na Constituição do Império do Império do Brasil (1824), claramente inspirada no liberal francês[3].

A idéia não foi muito bem compreendida na sua adaptação brasileira. Benjamin Constant havia pensado no Poder Neutro. Um Poder acima dos outros, capaz de coordená-los. No Brasil, traduziu-se de maneira equivocada, em face do contexto, a palavra clef ou clé por chave. Afonso Arinos de Mello Franco resolveu o enigma. Clef seria melhor traduzida por abóbada (voûte), a sustentação do arco da abóbada (clef de voûte), aquilo do que depende o equilíbrio do sistema. É a própria pedra talhada colocada como um cone, que faz com que o restante da abóbada se ajuste e se equilibre.

Esse Poder Neutro tem origem na intercessio dos magistrados romanos. O veto contra o poder. Poder contra Poder. O Poder Neutro caracteriza o sistema dos poderes negativos em oposição à idéia da tripartição de poderes. O Conselho Moral Republicano parece ser a proposta bolivariana para o exercício dos poderes negativos. Mais do que o Defensor do Povo, aquele Conselho Moral parece enfeixar os poderes tribunícios.

Concentrado o poder constituinte originário no povo, como seu titular credenciado a convocar, até por iniciativa dos eleitores, uma Assembléia Nacional Constituinte com o objetivo de transformar o Estado, criar um novo ordenamento jurídico e redigir uma nova Constituição, pode-se concluir que esse poder popular acrescentado do ideário bolivariano representa um forte critério principiológico para a interpretação da Constituição.

Em conseqüência, merece destaque o disposto no art. 350: o povo venezuelano, fiel a sua tradição republicana, a sua luta pela independência, a paz e a liberdade, desconhecerá qualquer regime, legislação ou autoridade que contrarie os valores, princípios e garantias democráticas ou menospreze os direitos humanos.

Se nem todo o modelo bolivariano foi adotado pela Constituição Venezuelana, bem como as instituições republicanas romanas em sua integralidade, o que talvez seja impossível no mundo contemporâneo, a Lei Fundamental da Venezuela é muito criativa e se afasta da repetição monocórdica das Constituições reféns do constitucionalismo liberal, sem qualquer criatividade e nenhuma preocupação com a realidade dos povos a que se referem.

 

 



 



 

* Presidente da URBS – União dos Romanistas Brasileiros. Diretor do Centro de Estudos de Direito Romano e Sistemas Jurídicos da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

 

** Texto para um discurso na Sala della Protomoteca. Campidoglio, a propósito da Commemorazione del CLXXVI anniversario della morte del Libertador Simon Bolívar, patrocinada pela Comuna de Roma e organizada pela Sociedade Bolivariana e pela Embaixada da República Bolivariana da Venezuela, no Seminário de estudos sobre Secessione della plebe e costituzione repubblicana. L’esempio bolivariano, dia 16 de dezembro de 2006.

 

[1] É conhecida a influência que Bolívar recebeu de seu professor, Simon Rodriguez, que era discípulo de Rousseau. O futuro Libertador estava na França, sob o impacto dos sucessos napoleônicos, quando viaja para Roma, onde, no Monte Sagrado, faz o juramento de libertar a sua Pátria.

 

[2] Aqui não parece seguir o figurino de Bolívar, que na proposta para a Constituição da Bolívia (1826) defende um executivo forte centralizado nos poderes de um Presidente vitalício.

 

[3] Esse quarto Poder foi definido pelo próprio texto constitucional brasileiro de 1824: «a chave de toda a organização política, e é delegada privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação, e seu Primeiro Representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da Independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos» (art.98).

O tema passou a ser recorrente na história política constitucional brasileira. Sempre foi fórmula inteligente para resolver o problema da tripartição de poderes, a partir do momento em que o sistema de freios e contrapesos deixara há muito de funcionar, havendo sempre, dependendo da circunstância política, a hegemonia deste ou daquele Poder. Logo, com a frustração republicana, circulou a idéia de um Poder Coordenador em substituição ao Moderador. Foi o que se propôs no anteprojeto da Carta de 1934, que era unicameral, mas propunha aquela solução, a qual não vingou, vindo a transformar-se a proposta do Poder Coordenador em uma segunda Câmara, com o nome tradicional de Senado. Isso explica, aliás, algumas das atribuições senatoriais brasileiras, como a de suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal, função que cairia como uma luva no Poder Coordenador. Além disso, tivemos vários candidatos ao Poder Moderador, no viés da retórica política: o Ministério Público, a Imprensa, o Exército.